Hamilton Dias de Souza e Júlio César Soares Garantias constitucionais estão sendo desrespeitadas…
Garantias constitucionais estão sendo desrespeitadas pelas investigações a respeito de crimes não tributários
Recentes fatos envolvendo a Receita Federal têm chamado a atenção da Comunidade jurídica.
Foi noticiada pela imprensa a criação, no âmbito da Receita Federal, de “Equipe Especial de Programação de Combate a Fraudes Tributárias”, que estaria, com base em “critérios próprios” [1], apurando a possível prática de crimes por parte de agentes públicos e pessoas ligadas a eles. Nos termos da Nota RFB/Copes nº. 48/201 8[2], os trabalhos da Equipe Especial buscam identificar “indícios contra a ordem tributária, corrupção e lavagem ou ocultação de bens”.
As investigações realizadas até o momento atingiram ministros do STF e do STJ[3], Desembargador[4], Procuradores[5], além de pessoas próximas a eles, principalmente aqueles que exercem a advocacia. De maneira açodada e sem o estabelecimento do devido processo legal, esses cidadãos foram acusados publicamente pela Receita Federal de corrupção, lavagem de dinheiro, ocultação de bens e tráfico de Influência[6], supostos crimes cuja investigação claramente escapa à competência da Receita Federal.
Em entrevista à revista Crusoé de 28/02/2019 (edição nº. 44)[7], Procurador do Ministério Público à frente da Operação Zelotes atacou a advocacia e o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, tribunal integrante do Ministério da Economia e responsável pela revisão dos fitos praticados pela Receita Federal, adjetivando-o e “um antro de corrupção e tráfico de influência que possui “uma estrutura anacrónica e sem precedentes” pelo fato de ser um “tribunal administrativo composto por advogados”.
Em ambos os episódios houve reação por parte dos envolvidos e dos órgãos de controle da administração pública e do exercício da advocacia.
No caso do trabalho da Equipe de Combate a Fraudes, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal corretamente determinou a “abertura de investigação de desvios de conduta e responsabilização daqueles que de má-fé divulgaram dados legalmente protegidos por sigilo, inclusive informações falsas e caluniosas”[8] . enquanto o Tribunal de Contas da União acolheu Representação[9] para que fossem apuradas “supostas irregularidades perpetradas no âmbito da Secretaria da Receita Federal, consistentes na realização de atividades com desvio de finalidade”. Na decisão em que o TCU conhece e dá seguimento à Representação[10], o Tribunal determina a realização de inspeção no âmbito da Receita Federal para “avaliar a legalidade, a legitimidade e a eficiência da realização desse tipo de atividade investigativa desatrelada do papel institucional da SRF”.
No que diz respeito às afirmações contidas na entrevista concedida à revista Crusoé pelo membro do Ministério Público à frente da Operação Zelotes, a Ordem dos Advogados do Brasil, por meio da seccional do Distrito Federal, se manifestou Publicamente[11] no sentido de que se trata de tentativa de “criminalização de advocacia”, típica de “países autoritários, em que inexistem procedimentos públicos e justos para que haja responsabilização dos agentes”
Pode parecer; à primeira vista, que os episódios acima narrados não possuam ligação. Porém, é sabido que o Ministério Público, no âmbito da Operação Zelotes, apresentou denúncias contra advogados e agentes públicos pelos mesmos crimes de corrupção atava, tráfico de influência, lavagem e ocultação de bens, baseadas exclusivamente em investigações realizadas pela Receita Federal e pela Corregedoria do antigo Ministério da Fazenda, como ocorreu, ao que nos consta, no caso dos agentes públicos e parentes a eles ligados, investigados pela Equipe Especial de Combate à Fraude.
Diante desses graves fatos surgem as seguintes indagações: poderia a Receita Federal exercer atividade investigativa e secreta desatrelada de sua atividade institucional? A atuação de “Grupos Especiais” de investigação instituídos no âmbito da Receita Federal poderia ir além da identificação de ilícitos tributários? Não estaria a Receita Federal, nas situações mencionadas, usurpando competência policial ou do próprio Ministério Público e, portanto, agindo com desvio de finalidade? Mais que
isso, ao investigar cidadãos de forma secreta e unilateralmente, não estaria a Receita agindo em contrariedade ao devido processo legal?
Inicialmente, parece não haver dúvida do desvio de finalidade praticado pela RFB. A própria Receita Federal confessa, na Nota RFB/Copes nº. 48/2018, que a Equipe Especial busca identificar “indícios contra a ordem tributária, corrupção e lavagem ou ocultação de bens”
Ocorre que o Decreto nº. 9.679/2019[12] delimita a competência do Secretário da Receita Federal, e consequentemente, do próprio órgão, deixando claro que as atividades permitidas a ele se relacionam à coordenação, supervisão, execução e controle das atividades de administração tributária e aduaneira, interpretação e aplicação da legislação tributária, planejamento, supervisão e execução da atividade de fiscalização tributária.
Da mesma forma, a Portaria MF nº. 430/2017[13], que veicula o atual Regimento Interno da Receita Federal, afirma em extenso rol contido em seu art. 1º, qual seria a finalidade do órgão. Em exatos 25 (vinte e cinco) incisos, destacam-se as atividades relativas ao planejamento, coordenação e execução das atividades de administração tributária federal e aduaneira (inc. I); planejamento, coordenação e execução dos serviços de fiscalização, lançamento, cobrança, arrecadação e controle de tributos e demais receitas da União(inc. VIII); orientação, supervisão e coordenação das atividades de produção e disseminação de informações estratégicas na área de sua competência (inc. XXIV), dentre outras questões relacionadas ao planeamento, fiscalização e execução das normas tributárias e aduaneiras.
Por certo não há, dentre as competências e atribuições contidas no Decreto nº 9.679/201 9 ou no Regimento Interno da Receita Federal, qualquer previsão para que o órgão possa atuar em substituição às Autoridades Policiais e ao próprio Ministério Público, na investigação, acusação e persecução de crimes que em nada se relacionam a ilícitos tributários, como ocorreu nas acusações de práticas de corrupção, tráfico de influência, ocultação de bens e lavagem de dinheiro, atribuídas a agentes públicos e advogados, ocorridas no âmbito da Operação Zelotes e nas investigações realizadas pela Equipe Especial de Combate à Fraude.
É nítido, portanto, que a atuação da Receita Federal em tais situações se deu em evidente desvio de finalidade, ultrapassando a competência que lhe é atribuída legalmente.
Por essa razão, os relatórios conclusivos de tais investigações não podem ser utilizados como provas ou indícios exclusivos a embasar a propositura de denúncias por parte do Ministério Público, sob pena de violação ao inciso LVI do artigo 5º da Constituição Federal[14]. Não há espaço, no Estado Democrático de Direito, para investigação policial travestida de investigação fiscal. A propositura de denúncia pela suposta prática de crimes não-tributários. com base exclusivamente no trabalho da Receita Federal, por certo transforma em imprestável a peça acusatória que venha a ser apresentada pelo Ministério Público.
É fato que o STF ao analisar o art. 144, § 1º, inciso IV da Constituição Federal[15], firmou em sede de repercussão geral, o entendimento segundo o qual o Ministério Público dispõe de competência para promover investigações de natureza penal. No julgamento do RE 593.727[16], a maioria do Plenário do STF entendeu que a atividade investigatória não é exclusiva da polícia judiciária. O acórdão cita como exemplo, para sustentar tal entendimento, as previsões constitucionais e legais relativamente a investigações conduzidas pelas CPls, COAR BACEN, CVM, TCU e, inclusive, pela própria Receita Federal.
Porém, alguns pontos envolvendo o julgamento do RE 593.727 precisam ser esclarecidos. Primeiramente, vale salientar que em momento algum o STF afirmou que os órgãos governamentais que possuam capacidade investigatória possam exercer atos desta natureza fora de sua competência funcional, nem tampouco que o Ministério Público possa, sob qualquer hipótese, delegar a quaisquer outros órgãos o exercício de atos investigatórios de natureza penal. Ao BACEN, por exemplo, não é dada a possibilidade de investigar infrações tributárias, da mesma forma que não cabe à Receita Federal a investigação e apuração de delitos na esfera penal.
Outro ponto de destaque reside no fato de que o reconhecimento, por parte do STF, quanto à competência do Ministério Público para promover inquéritos de natureza penal, não significa carta branca para que procedimentos investigatórios sejam instaurados e conduzidos, no âmbito do Ministério Público, sem a observância aos princípios basilares do Estado Democrático de Direito. O parquet pode, por certo, atuar em cooperação com a Receita Federal na apuração de crimes que tenham origem em ilícitos tributários. Porém, dos votos proferidos no RE 593.727, é possível extrair o que o STF chamou de “diretrizes procedimentais” serem observadas pelo Ministério Público.
No entender da Suprema Corte, a investigação a ser instaurada e conduzida pelo Ministério Público (i) deve seguir os mesmos preceitos do inquérito policial e procedimentos administrativos sancionatórios; (ii) deve haver instauração formal do procedimento, que poderá da mesma forma ser sigiloso ou não; (iii) deve ser controlada pelo Poder Judiciário e deve haver pertinência entre o sujeito passivo com o fato investigado; (iv) deve haver a juntado cronológica de atos e fatos processuais, principalmente diligências, provas coligidas e oitivas e principalmente, (v) deve haver o pleno conhecimento dos atos de investigação à parte e ao seu advogado; sendo que (ví) a atuação do parques deve ser subsidiária e ocorrer quando não for possível ou recomendável a atuação da própria polícia.
Não há na jurisprudência do STF qualquer entendimento que chancele a prática de investigações penais de forma secreta, alheias ao controle do Poder Judiciário. e que não sejam formalmente conduzidas pela autoridade policial ou pelo Ministério Público, subsidiariamente.
Portanto, nos episódios acima narrados, também parece clara a inobservância dos postulados do due process of law por parte da Receita Federal. Isso porque as investigações ocorridas no âmbito daquele órgão, para a identificação da prática de crimes desatrelados de questões tributárias, ocorreram de forma secreta e sem que houvesse qualquer participação dos acusados. Ainda que seja possível que a investigação policial ou no âmbito do Ministério Público ocorram de maneira sigilosa, para que não haja prejuízo ao levantamento de provas, certo é que o início e a conclusão de investigação criminal, por órgão incompetente, representa nítida violação aos direitos fundamentais, em especial àqueles previstos nos incisos LIII e LIV do artigo 5o da Constituição Federal[17]. A violação ao devido processo legal é patente.
Para agravar ainda mais a situação, houve o vazamento de dados e do próprio teor das conclusões – secretas e unilaterais – da Receita Federal para a imprensa, o que significou a condenação pública, prematura e inconstitucional dos acusados pela prática de supostos crimes que jamais foram chamados a esclarecer. Em um dos episódios, envolvendo integrante do Supremo Tribunal Federal, a própria Receita Federal voltou atrás e reconheceu o indevido juízo de valor que culminou na acusação pública, antecipada e indevida de Ministro, pela prática de crimes cuja identificação e investigação não cabia à Receita Federal[18].
A história nos mostra que estruturas secretas de investigação, instaladas no âmbito de órgãos governamentais, cujas atividades são exercidas em inobservância às competências e finalidades organizacionais delimitadas constitucional e legalmente, e em manifesto abuso de poderá são típicas de governos autoritários em que a tónica da atuação estatal é: os fins justificam os meios. Tal assertiva, obviamente, não tem espaço em ordens jurídicas estabelecidas democraticamente. Ademais, o que é igualmente característico em tais países, como bem lembrou a OAB/DE é que tais ambientes são marcados também pela criminalização da advocacia(atividade essencial à manutenção da justiça, como afirma a Constituição Federal[19]) e pela inexistência de publicidade e justiça nos procedimentos utilizados para responsabilização de agentes públicos e privados pela prática de crimes.
Não se nega, de forma alguma, a importância da Receita Federal para a administração tributária nacional. A página da Receita Federal na internet afirma que a missão do órgão é “Exercer a administração tributária e aduaneira com justiça fiscal e respeito ao cidadão, em benefício da sociedade[20], e concordamos que assim o seja. Nem ao menos se nega, igualmente, a importância da atuação conjunta da Receita Federal com as Autoridades Policiais e com o Ministério Público que, em cooperação, podem agir na identificação, repreensão e reparação de crimes cometidos contra a administração tributária. Porém, não há lugar no Estado
Democrático de Direito, para a atuação de polícias secretas que atropelem as garantias e direitos fundamentais e utilizem, de maneira indevida, a estrutura estatal.
Hamilton Dias de Souza e Júlio César Soares Garantias constitucionais estão sendo desrespeitadas…